
Voltemos pouco mais de 50 anos no tempo: o Brasil era um importador de alimentos, nos faltavam produtos básicos, pão e leite entre eles. Nossas áreas rurais eram marcadas por pobreza, enorme desigualdade social, baixa produtividade, poucos empregos e oportunidades de renda, todos de baixo retorno. As tecnologias que usávamos eram importadas dos países ricos do Hemisfério Norte. Nossa balança comercial era precária, nos faltavam divisas para tudo, desde moeda conversível para viagens ao exterior até importação de alimentos, energia e medicamentos. Fruto da desesperança, o êxodo rural fluía em direção à periferia das cidades.
Foi quando o Governo brasileiro decidiu dar um basta e reverter a situação, com a visão de futuro acertada de investir no desenvolvimento de tecnologia própria, adequada à nossa condição tropical. Criou a Embrapa e atraiu jovens talentos para seus quadros. Embora não seja o único fator, o desenvolvimento tecnológico dos últimos 50 anos teve o condão primordial de tornar o Brasil o maior exportador líquido de produtos agrícolas do mundo, o maior produtor e exportador de diversos produtos. Mais que um orgulho, matriz de desenvolvimento e progresso.
A produtividade no campo multiplicou-se inúmeras vezes, a ponto de o agronegócio representar entre um terço e um quarto do PIB nacional. Hoje o Brasil é o grande gerador e detentor de tecnologia agropecuária para a faixa tropical do planeta, demandado por dezenas de outros países. O agronegócio transmutou-se em um grande empregador de mão-de-obra qualificada, respondendo por mais de duas dezenas de milhões de empregos. Abundam as oportunidades de empreendedorismo no campo. Nossa balança comercial é altamente superavitária – devido, exclusivamente ao agronegócio, posto que os demais setores são deficitários. Com as divisas obtidas, é possível adquirir bens e serviços úteis para a sociedade brasileira, como foi o caso de centenas de milhões de doses de vacina contra a Covid-19, na recente pandemia.
Na esteira do sucesso do agronegócio, floresceram cidades no interior do Brasil, plenas de oportunidades de emprego e renda, altamente progressistas e com elevada qualidade de vida. Seu surgimento aplacou a pressão migratória que inchava as periferias das grandes cidades do Brasil, que originaram desafios até hoje difíceis de superar, como atender suas necessidades básicas de saúde, educação, transporte, moradia, segurança e oportunidades de renda.
Cada irmão brasileiro – mormente os menos aquinhoados – se beneficiou do avanço tecnológico. De acordo com os dados do DIEESE, a cesta básica – composta fundamentalmente por produtos agrícolas – teve seu valor real reduzido em 43,17%, entre 1970 e 2021.
O vetor do progresso
O fulcro dessa revolução única na História Mundial foi o desenvolvimento tecnológico acelerado que ocorreu nos últimos 50 anos. Aqueles jovens cheios de energia e entusiasmo – embora com pouco conhecimento e experiência – transformaram o ambiente de pobreza, desigualdade e sem oportunidades em um exemplo de sucesso mundial, de elevada produtividade, sustentabilidade e competitividade. Para citar um número síntese, refira-se o retorno social da Embrapa (2024), que devolve impressionantes R$ 25,37 para cada R$ 1,00 investido na empresa. Parte ponderável disso se deve àqueles jovens contratados na criação da Embrapa.
Foram milhares de tecnologias desenvolvidas no meio século de existência da Embrapa, o que torna difícil destacar algumas sem correr o risco de injustiças. Assumirei esse risco à guisa de ilustração. Iniciemos com o plantio direto, que tornou possível expandir o cultivo para mais de 70 milhões de hectares Brasil afora, eliminando o perigo da erosão que dilapidava nossos solos, há meros 50 anos. Um exemplo mundial de sustentabilidade.
Prosseguimos com outro exemplo de quebra de paradigma: a soja tem sua origem no Nordeste da China, a 54º de latitude. As variedades de soja disponíveis há 60 anos não permitiam cultivo compensador além das fronteiras gaúchas. Os jovens pesquisadores da época “tropicalizaram” a soja, que hoje é cultivada em todo o território nacional – feito único no mundo. Vamos além: programas de manejo de pragas evitaram a aplicação de milhões de litros de pesticidas, reduzindo os índices de intoxicação humana, de agressão ao ambiente, diminuindo o custo para o produtor e poupando bilhões de dólares em importação. Fruto do trabalho daqueles jovens cientistas, contratados na criação da Embrapa.
A lista é extensa, mas ressaltemos alguns exemplos do presente. Em finai de abril uma pesquisadora sênior da Embrapa foi agraciada com o World Food Prize, reconhecido como o “Prêmio Nobel da Agricultura”. Os brasileiros encheram-se de orgulho. E o mundo cantou o feito em prosa e verso, reverenciando o trabalho de uma vida, de uma pesquisadora que ingressou jovem na Embrapa, e desenvolveu tecnologias que permitiram à soja e ao feijão dispensarem o uso de milhões de toneladas de adubos nitrogenados, ao longo das últimas décadas. Ao não usar esse fertilizante, a cultura da soja viabilizou-se financeiramente, tornou-se sustentável e competitiva e o Brasil alçou-se à condição de maior produtor e exportador de soja do mundo.
Arrisco usar o meu próprio exemplo mais recente: nos últimos dez anos dediquei-me a estudar a integração de abelhas (sejam elas nativas ou criadas) com a agricultura. A tecnologia desenvolvida permite aumentar a produtividade da lavoura – por exemplo, até 20% na lavoura de soja-, triplicar a produção de mel – com profunda conotação social, vez que a grande maioria dos apicultores são pequenos produtores familiares – e proteger a biodiversidade e o meio ambiente. Nossos estudos mostram que, ao integrar abelhas e agricultura, é possível reduzir até 25% das emissões de gases de efeito estufa, responsáveis pelas mudanças climáticas em curso.
Nos últimos anos, participei de inúmeros congressos internacionais, apresentando esse avanço tecnológico, que chamou a atenção de cientistas e formuladores de políticas públicas mundo afora – o Brasil como exemplo para o mundo! Ainda na semana ada participei de um evento realizado em Nova Iorque, convidado que fui para apresentar a diversas lideranças setoriais e investidores de inúmeros países, os benefícios decorrentes do uso extensivo da tecnologia.
E tudo pode acabar de repente...
Aqueles jovens pesquisadores contratados pela Embrapa, em seu alvorecer, cheios de energia, mas com conhecimento limitado e quase nenhuma experiência, conseguiram feitos incríveis. Hoje são septuagenários, continuam cheios de energia, mas com conhecimento e experiência inigualáveis. Uma verdadeira elite intelectual, um ativo, um patrimônio da Nação brasileira. Ao longo de 50 anos, com o dinheiro dos impostos dos brasileiros, eles foram treinados, capacitados, receberam seus salários e, também, recursos para desenvolver seus projetos de pesquisa.
Alternativamente, esses recursos poderiam ter ido para a saúde, educação ou segurança. Mas, a sociedade brasileira investiu em educação, ciência e tecnologia, seguindo o sábio conselho de Mahatama Ghandi. Certa vez, o grande líder indiano foi perguntado por que um país pobre como a Índia, com múltiplas demandas, destinava uma parcela ponderável de seus recursos públicos à educação, ciência e tecnologia. Sua resposta é um ensinamento que pera gerações: justamente porque somos pobres! Tal e qual o Brasil!
Ocorre que os outrora jovens inexperientes, hoje constituem um celeiro de sabedoria, conhecimento e experiência, um grande ativo da Nação, um patrimônio inestimável, porém, ironicamente, à beira de serem remetidos ao ostracismo, sem choro nem vela, como propalado na canção popular. Talvez nem fita amarela haverá quando forem transformados de ativo inestimável para uma espécie de “lixo não reciclável” da intelectualidade.
O que levaria uma Nação a descartar tamanho ativo, que tanto custou em termos de investimento de recursos públicos, que ainda poderia lhe dar enormes retornos? Ocorre que a aposentadoria compulsória é obrigatória para servidores públicos que completam 75 anos, conforme o artigo 40, § 1º, inciso II, da Constituição Federal. O leitor poderia argumentar: mas empregado da Embrapa não é servidor público, logo o dispositivo constitucional não se aplica.
Certo, mas... sobreveio a reforma da previdência de 2019. Em breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá definir se a regra constitucional, que prevê a rescisão compulsória do contrato de trabalho do empregado público que completar 75 anos de idade, pode ser imediatamente aplicada ou se é necessário editar uma lei complementar para regulamentar a medida.
Data máxima vênia dos senhores ministros do STF, entendo que o dispositivo não é autoaplicável, pois impõe a necessidade de regulamentação por lei complementar (§ 16. Os empregados dos consórcios públicos, das empresas públicas, das sociedades de economia mista e das suas subsidiárias serão aposentados compulsoriamente, observado o cumprimento do tempo mínimo de contribuição, ao atingir a idade máxima de que trata o inciso II do § 1º do art. 40, na forma estabelecida em lei."). Lei essa que não foi discutida e aprovada no Congresso Nacional, o que remete o feito à apreciação do Judiciário.
Completei 75 anos há um mês. O jovem que ingressou na Embrapa em 1974 hoje é um repositório de conhecimento e experiência, que seria extremamente útil à nossa Pátria. Julgo-me em perfeitas condições de continuar contribuindo para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do Brasil por, no mínimo, mais uma década. Retribuindo o investimento que foi efetuado em mim pela sociedade, com o suado dinheiro dos seus impostos.
Pelo que tenho perscrutado junto aos demais colegas cientistas em situação similar, tenho convicção de que esse é o pensamento dominante. Não temos interesse em sermos remetidos a um ostracismo que nada serve à Nação, ser transformado em “lixo intelectual não reciclável”. Perceba-se a ironia: aquela mesma colega que referi acima, que recebeu o “Prêmio Nobel da Agricultura”, louvada em prosa e verso no Brasil e alhures: em pouco anos será chamada no setor de recursos humanos e dispensada com nada mais que um formal “muito obrigado”. O seu conhecimento, a sua experiência, que poderiam contribuir muito mais para o desenvolvimento do Brasil e do mundo será relegado ao baú do tempo, sem qualquer utilidade para a nossa sociedade. Quanto tempo e quanto dinheiro será necessário para que um eventual seu substituto alcance o mesmo nível de excelência? E que, ao atingir, será ceifado da mesma forma que ela o será...
Não é assim que são tratados os cientistas de países desenvolvidos, que possuem inúmeros mecanismos para reter sua inteligência a serviço de suas nações e seus povos. Isso pode fazer toda a diferença no desenvolvimento das Nações.
Leitores, desculpem-me o desabafo, mas esse texto é um apelo desesperado, de uma alma que está de luto porque pode ser impedida de continuar contribuindo para a grandeza do Brasil, assim como centenas de outros colegas que serão forçados a vestir o luto e a frustração de um ostracismo forçado, quando se encontram no auge de sua capacidade intelectual.
O autor é pesquisador da Embrapa, membro do Conselho Consultivo Agro Sustentável, da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e do Comitê Científico da ABELHA.